Teresa Margarida da Silva e Orta escreveu as Aventuras de Diófanes, também chamado de Máximas de Virtude e Formosura, em meados do século XVIII. A publicação desta obra data de 1752 em sua primeira edição. Em 1790 saiu a terceira edição mas, dessa vez, a obra veio sob o nome de Alexandre de Gusmão, um amigo da autora já falecido. Para maiores esclarecimentos a respeito, vale considerar o estudo de Sofia de Melo Araújo, cujos fragmentos abaixo são bastante esclarecedores:
“Muitos são os motivos apontados para que a já quase octogenária Teresa Margarida permitisse que a terceira edição do texto hoje aceite como seu, de 1790, viesse a público em nome do seu amigo íntimo Alexandre de Gusmão, já por então falecido – Maior aceitação de um autor masculino? Estratégia comercial visando o prestígio do autor? Co-autoria? Homenagem póstuma dada a partilhada paternidade efetiva dos ideais expostos? Infelizmente, teremos que nos render a que, até à desejada submissão do fio do tempo ao tecer humano, do passado nada mais temos que os textos que os homens de então escolheram (ou puderam) legar-nos. Assim, creio ser estéril a discussão de intenções neste ato. Igualmente infrutífera, mais competitiva que científica, me parece a querela entre os defensores de Aventuras de Diófanes como obra brasileira (dada a nacionalidade de Orta), portuguesa (dada a sua vivência quase exclusivamente em Portugal) ou luso-brasileira (numa espécie de terreno misto, assente nas condições políticas do Brasil colônia do século XVIII), discussão alimentada muito em torno da apresentação da própria como ‘estrangeira’.
(...) Mais interessante será, então, creio, a questão de voz autoral, enquanto realidade múltipla e paleta de distintas intensidades. De fato, e aceitando Teresa Margarida como a mão que delineou as palavras de Aventuras de Diófanes, muitas são as vozes que ecoam no texto: desde logo o já nomeado Alexandre Gusmão, estrangeirado, escrivão de D. João V e peça fundamental no Tratado de Madrid, como documenta Jaime Cortesão, amigo e mentor de Teresa; também, mais ao longe, conseguimos ouvir ecos de Luís António Verney e da sua defesa da importância da educação feminina, embora apenas enquanto meio para o fim de uma melhor cidadania das crianças educadas pelas mulheres; o próprio texto reclama a voz de Fénelon no seu Aventures de Télémaque; perpassam o texto as vozes iluminadas de Voltaire, Diderot, Montesquieu, Rousseau...; mas ecoa, sobretudo a voz de uma mulher muito especial que é ela mesma um símbolo emancipado das/pelas Luzes, a própria Teresa Margarida que aos treze anos se apaixona por um homem mais velho e decide tomar as rédeas da sua vida por forma a conduzi-la rumo à felicidade, que aos 16 anos aceita ser deserdada e foge com o homem que ama, que toda a vida não permite a pai, irmão, marido, filhos, rei ou carcereiro que lhe coloquem grilhões na Alma, no Coração, na Razão ou na Voz.” (ARAÚJO, 2006.)
O Poema Épico-Trágico foi escrito entre 1770 e 1777, época em que a autora esteve presa. A pesquisadora Christina Ramalho afirma que Teresa Margarida
“por certo sequer imaginara estar gerando, em pleno século XVIII, no âmbito da literatura de língua portuguesa, sementes de questões curiosas: a manifestação literária épica, com seus feitos grandiosos e heróis másculos e guerreiros, seria um canto vedado à autoria feminina? Que motivações, que inter-relações e que visão histórica haveriam que surgir para tornar concebível essa autoria? Por que esse canto épico somente no século XX passou a receber a atenção de autoras? Ainda refletindo sobre esses questionamentos, qual fora a ousadia de Teresa Margarida ao fazer uso dessa forma tradicionalmente nobre de criação literária? A resposta nasce de uma observação atenta da referenciação poética explícita desde o início de Poema épico-trágico.
A referência inicial a Homero e Virgílio ratifica tanto a intencionalidade épica de Teresa Margarida quanto sua coerência com as tendências estéticas neoclássicas da época, ainda que, em relação ao plano do conteúdo, a escritora tenha construído um discurso centrado em um “eu” de acentuada natureza pré-romântica. A ousadia, no entanto, fica por conta de esta ter assumido, em primeira pessoa, uma condição heróica que a punha no mesmo patamar de outros “heróis de cívicas empresas”, ou seja, a seu martírio particular, a autora deu relevância mítico-dramática, fazendo uso da mais clássica expressão literária para dar destaque à sua peculiar condição de exilada no Mosteiro de Freiras da Província da Beira, a mando do Marquês de Pombal. A autora, portanto, de forma pioneira, inseriu, através de seu texto, a história privada nos compêndios da tradição épica, cujo objeto de interesse sempre foram, e continuariam sendo, os chamados feitos e fatos grandiosos, todos eles, obviamente, embrionários da força física, coragem e inteligência masculinas. Da terceira estrofe em diante, clarifica-se sua real intenção: chamar a atenção das autoridades reais para a situação inusitada e duradoura: foram sete anos de confinamento em que se encontrava.” (RAMALHO, 200?)
Este Poema Épico-Trágico foi publicado somente em 1993, a partir de um manuscrito pertencente à Biblioteca José e Guita Mindlin.
“Muitos são os motivos apontados para que a já quase octogenária Teresa Margarida permitisse que a terceira edição do texto hoje aceite como seu, de 1790, viesse a público em nome do seu amigo íntimo Alexandre de Gusmão, já por então falecido – Maior aceitação de um autor masculino? Estratégia comercial visando o prestígio do autor? Co-autoria? Homenagem póstuma dada a partilhada paternidade efetiva dos ideais expostos? Infelizmente, teremos que nos render a que, até à desejada submissão do fio do tempo ao tecer humano, do passado nada mais temos que os textos que os homens de então escolheram (ou puderam) legar-nos. Assim, creio ser estéril a discussão de intenções neste ato. Igualmente infrutífera, mais competitiva que científica, me parece a querela entre os defensores de Aventuras de Diófanes como obra brasileira (dada a nacionalidade de Orta), portuguesa (dada a sua vivência quase exclusivamente em Portugal) ou luso-brasileira (numa espécie de terreno misto, assente nas condições políticas do Brasil colônia do século XVIII), discussão alimentada muito em torno da apresentação da própria como ‘estrangeira’.
(...) Mais interessante será, então, creio, a questão de voz autoral, enquanto realidade múltipla e paleta de distintas intensidades. De fato, e aceitando Teresa Margarida como a mão que delineou as palavras de Aventuras de Diófanes, muitas são as vozes que ecoam no texto: desde logo o já nomeado Alexandre Gusmão, estrangeirado, escrivão de D. João V e peça fundamental no Tratado de Madrid, como documenta Jaime Cortesão, amigo e mentor de Teresa; também, mais ao longe, conseguimos ouvir ecos de Luís António Verney e da sua defesa da importância da educação feminina, embora apenas enquanto meio para o fim de uma melhor cidadania das crianças educadas pelas mulheres; o próprio texto reclama a voz de Fénelon no seu Aventures de Télémaque; perpassam o texto as vozes iluminadas de Voltaire, Diderot, Montesquieu, Rousseau...; mas ecoa, sobretudo a voz de uma mulher muito especial que é ela mesma um símbolo emancipado das/pelas Luzes, a própria Teresa Margarida que aos treze anos se apaixona por um homem mais velho e decide tomar as rédeas da sua vida por forma a conduzi-la rumo à felicidade, que aos 16 anos aceita ser deserdada e foge com o homem que ama, que toda a vida não permite a pai, irmão, marido, filhos, rei ou carcereiro que lhe coloquem grilhões na Alma, no Coração, na Razão ou na Voz.” (ARAÚJO, 2006.)
O Poema Épico-Trágico foi escrito entre 1770 e 1777, época em que a autora esteve presa. A pesquisadora Christina Ramalho afirma que Teresa Margarida
“por certo sequer imaginara estar gerando, em pleno século XVIII, no âmbito da literatura de língua portuguesa, sementes de questões curiosas: a manifestação literária épica, com seus feitos grandiosos e heróis másculos e guerreiros, seria um canto vedado à autoria feminina? Que motivações, que inter-relações e que visão histórica haveriam que surgir para tornar concebível essa autoria? Por que esse canto épico somente no século XX passou a receber a atenção de autoras? Ainda refletindo sobre esses questionamentos, qual fora a ousadia de Teresa Margarida ao fazer uso dessa forma tradicionalmente nobre de criação literária? A resposta nasce de uma observação atenta da referenciação poética explícita desde o início de Poema épico-trágico.
A referência inicial a Homero e Virgílio ratifica tanto a intencionalidade épica de Teresa Margarida quanto sua coerência com as tendências estéticas neoclássicas da época, ainda que, em relação ao plano do conteúdo, a escritora tenha construído um discurso centrado em um “eu” de acentuada natureza pré-romântica. A ousadia, no entanto, fica por conta de esta ter assumido, em primeira pessoa, uma condição heróica que a punha no mesmo patamar de outros “heróis de cívicas empresas”, ou seja, a seu martírio particular, a autora deu relevância mítico-dramática, fazendo uso da mais clássica expressão literária para dar destaque à sua peculiar condição de exilada no Mosteiro de Freiras da Província da Beira, a mando do Marquês de Pombal. A autora, portanto, de forma pioneira, inseriu, através de seu texto, a história privada nos compêndios da tradição épica, cujo objeto de interesse sempre foram, e continuariam sendo, os chamados feitos e fatos grandiosos, todos eles, obviamente, embrionários da força física, coragem e inteligência masculinas. Da terceira estrofe em diante, clarifica-se sua real intenção: chamar a atenção das autoridades reais para a situação inusitada e duradoura: foram sete anos de confinamento em que se encontrava.” (RAMALHO, 200?)
Este Poema Épico-Trágico foi publicado somente em 1993, a partir de um manuscrito pertencente à Biblioteca José e Guita Mindlin.
Nenhum comentário:
Postar um comentário